A mineira Gislaine Rosa vinha há um ano tentando contatar João Paulo Pacífico, CEO do Grupo Gaia, sem sucesso. Fazendeira com propriedades no Sul de Minas e em Goiás, ela tinha gostado de um post de João Paulo sobre agricultura sustentável e tinha algumas ideias para trocar, mas seus acenos invariavelmente se perdiam nas caixas de mensagens das redes sociais.
João Paulo é uma espécie de infiltrado na Faria Lima. Um gestor ativista bastante ativo nas redes. Tem 219 mil seguidores no Instagram, onde costuma atacar a ganância das grandes corporações e fazer a defesa de uma sociedade mais justa e sustentável. Ele tem uma securitizadora focada em investimentos de impacto e já levantou mais de R$ 20 milhões para financiar a produção de alimentos sem agrotóxicos do Movimento Sem Terra (MST).
Gisa, como gosta de ser chamada, estava quase desistindo:
— Estava achando ele muito estrela. Aí uma amiga foi a um congresso onde o João estava e conseguiu o celular dele.
Era sua última cartada e ela resolveu caprichar na mensagem:
“João, eu tenho uma área de 1.500 hectares. Gostaria que a Gaia ou você fossem meus “herdeiros”, meus parceiros para transformar a fazenda. Ou sua orientação, como posso fazer uma parceria. Podemos inclusive trazer agricultores para fazermos uma fazenda modelo sócio-econômico com eles.”
Isso foi em 12 de julho. Três dias depois, João e Gisa se encontravam em São Paulo para traçar os planos de transformar a Fazenda Pinheiros, um conjunto de propriedades somando 1.500 hectares no entorno do município de Campo Belo, no sul de Minas Gerais, em um modelo sócio-ambiental de produção agrícola: adotando o sistema agroflorestal de cultivo, com agricultores familiares trabalhando coletivamente. Na propriedade, que remonta ao avô de Gisa, hoje planta-se soja e milho e cria-se gado.
Gisa é quase uma fazendeira acidental. Ela queria mesmo ser jornalista. Saiu de Campo Belo e foi para o Rio, onde cursou jornalismo e direito. Chegou a fazer estágio nas rádios Globo e JB FM. Mas a carreira foi abreviada por uma notícia trágica: a morte precoce do seu pai, aos 52 anos. Era 1990, ela tinha 27 anos e voltou para a terra natal para cuidar dos negócios da família. O irmão Carlos Alberto, o Beto, ficou administrando as fazendas. Coube a Gisa pilotar uma concessionária, aberta por seu pai com o desejo de assegurar um futuro para a filha.
— Meu pai não me queria de jeito nenhum no meio de peão — diz Gisa com seu sotaque mineiro.
Ela relembra o furor quando souberam que a concessionária seria comandada por uma mulher:
— Vieram me falar que já tinham arrumado um comprador. Respondi que só debaixo do meu cadáver.
A concessionária, que vendia “meia dúzia de carros”, hoje tem 10 mil m², 70 funcionários e uma filial.
Uma outra notícia triste, porém, acabou levando Gisa a se meter no meio dos peões. A morte da mãe, Amah, em 2006. Pouco depois, seu irmão teve um AVC. Quando os dois irmãos fizeram a partilha, em 2017, Gisa ficou com a Fazenda Pinheiros e mais duas propriedades em Goiás, além da concessionária.
Foi quando ela começou a fazer intervenções pontuais na fazenda: se voltou para a “produção de água”, recuperando 64 nascentes.
Foto: Reprodução – Gislaine
— Eles criavam porco solto e isso acaba com as nascentes — diz ela, que também reservou uma lavoura para o cultivo de cafés especiais, com colheita manual feita por mulheres, sob a marca Café da Bananeira.
Gisa contratou professores para alfabetizar quem ainda não era letrado e dar curso de inglês para as novas gerações.
— Meu sonho era ter uma fazenda modelo de sustentabilidade, com escola técnica para os funcionários. Foi aí que comecei a procurar o João — diz Gisa.
Ela não teve filhos. O irmão faleceu ano passado.
— Sempre tive vontade de compartilhar, de dividir. Estou muito emocionada, com uma alegria e uma paz imensa de saber que a plantação vai ser orgânica, que as águas serão preservadas, que vai ter escola para as crianças, quem sabe um posto de saúde, uma capelinha — disse Gisa, que recebeu a coluna com um sorriso largo e um docinho de leite em seu quarto no Hospital Sírio Libanês, em São Paulo, na última terça-feira, dia 22.
Há poucas semanas, Gisa recebeu uma outra notícia que tornou a vontade uma urgência: um diagnóstico de câncer.
— Guimarães Rosa dizia que o que a vida quer da gente é coragem. Ainda bem que tive essa coragem de ir atrás do João e não desistir. Sozinha eu não saberia por onde começar.
Pergunto se tem algum arrependimento:
— Nenhum, sou muito grata por tudo. Arrependo de não ter feito isso mais cedo. Mas já está sendo feito. Não vou arrepender mais.
As outras propriedades Gisa pretende vender, doando o dinheiro para hospitais beneficentes.
Plantio coletivo
O projeto da Fazenda Pinheiros deve se chamar ”Nova Era de Gaia” e abrigar 120 famílias de agricultores, em um modelo cooperativo, com plantio coletivo. Serão priorizadas para receber moradia, com direito de permanecer para sempre nas terras, famílias de agricultores da região.
A fazenda vai passar por um reflorestamento e a implantação do sistema agroflorestal — em que as culturas agrícolas são plantadas em meio a árvores — vai contar com a assessoria técnica do Movimento Sem Terra (MST), que também deverá auxiliar na comercialização da produção.
Foto: Reprodução
— Essa é uma reforma agrária do terceiro setor. Um modelo inédito no Brasil e talvez no mundo, por usar um Fundo Patrimonial — ressalta João, já respondento aos confrontantes (vizinhos das fazendas) que, com as primeiras notícias sobre a doação, passaram a temer uma “invasão de sem terras”.
— Estamos criando um novo modelo economicamente viável de regeneração de fazendas, com produção de alimentos, com gente morando lá dentro. É uma solução ambiental, econômica, social e alimentar. Queremos criar um modelo que possa ser replicável, inspirando outras pessoas a fazerem doações de terras para serem regeneradas — completa, João.
A escola da fazenda já tem nome: Padre Justino, um padre holandês conhecido por ter feito o primeiro assentamento no Brasil, muito antes do nascimento do MST nos anos 80. Justino era professor, amigo do pai de Gisa e frequentava a fazenda.
— Meu pai cedeu umas terras para o Padre Justino plantar arroz há 45 anos. O padre era um visionário — lembra Gisa.
Só agora, em meio às reuniões para o desenvolvimento da “Nova Era de Gaia”, ela descobriu que o padre Justino da sua infância é um ícone celebrado pelos trabalhadores rurais.
Fonte: Jornal O Globo / texto: Mariana Barbosa